O dia que Tia Lininha me cegou

sábado, 19 de novembro de 2011

No decorrer dos meus anos de percurso académico algumas matérias me marcaram mais do que outras. Uma delas é um teoria sociológica chamada «invisibilidade social». De uma forma simples, a ideia desta teoria é que indivíduos marginalizados (por questões económicas, raciais, sociais, entre outras) ficam invisíveis aos olhos da sociedade. Bem, a ideia fantástica de ter super poderes – que pode ter passado pela cabeça de alguns – é na verdade extremamente dolorosa. Ser invisível socialmente é perder a sua identidade enquanto cidadão, é como ser um objecto na paisagem urbana. Dito de uma forma mais clara, é um sentimento de ser um nada.

Tentei analisar o motivo desta teoria ter ficado tão marcada na minha mente. Se calhar por não compreender como as pessoas têm preconceitos tão definidos ao ponto de deixá-las “cegas” inconscientemente. Se calhar por me achar uma excepção a própria teoria. Sim, afinal eu dou bom dia educadamente para as senhoras que limpam o prédio, falo com o senhor que cuida do canteiro das flores, me incomodo ao ver um pedinte na rua e tento ajudá-lo quando posso. Teria eu olhos em terra de cegos?

Há uns dias eu andava pelo Facebook e encontrei um grupo criado por alunos da Faculdade de Ciências Sociais e Humanas (FCSH) para homenagear a Tia Lininha. Quem é a Tia Lininha? Mesmo quem estuda nesta faculdade pode não ligar o nome a pessoa, mas lá estava a foto da tia, sempre sorridente com seu avental verde e toca na cabeça. Agora tinha ficado mais fácil. Lininha, este é o nome da senhora mais simpática que existe por de trás dos balcões do refeitório da faculdade. Naquele momento questionei-me se a teoria deveria ser levada assim tão a peito, afinal, alguém enxergou uma possível “invisível”, e mais, tornou-a muito mais visível (o grupo recém-criado tem mais de 250 membros).´

Noutro dia, com a habitual fome antes das aulas do mestrado, resolvi fazer um lanche. Adivinhem quem me atendeu ao balcão? Lá estava ela, sorridente com o seu “diga menino”. Enquanto Tia Lininha preparava-me um croissant aproveitei para meter conversa e lancei logo: “Então, quer dizer que a senhora está a ficar famosa na internet?”.

“É verdade menino, fico muito feliz pela homenagem que me fizeram. Estou aqui todos os dias para vos atender bem, sempre sorrindo. Posso as vezes estar mais triste, mas vocês não notam porque não têm culpa e não precisam pagar por isto”, explicava-me entre uma barrada e outra de manteiga. Mas então o semblante sorridente deu lugar a um olhar mais melancólico, quase lacrimejado, e Tia Lininha continuou: “Depois de trinta anos a trabalhar nesta faculdade, receber uma homenagem assim é gratificante, sinto que fui recompensada”.

Trinta anos? Foram precisos trinta anos de sorrisos e bom atendimento para a Tia Lininha ser – e se sentir – reconhecida? Pus-me a pensar que estou na FCSH há quase quatro anos numa rotina de aulas, sandes e croissants e sempre me passou ao lado a Tia Lininha e todas as outras tias… e tios. Logo eu que me achava a excepção da teoria.

Afinal, a teoria estava completamente errada. O problema não é a invisibilidade social dos marginalizados, e sim, a cegueira de quem têm olhos para ver. Tia Lininha me mostrou que sou cego em uma terra em que muitos julgam enxergar.